"Antes de estudar o Zen por trinta anos, eu via montanhas como montanhas, e águas como águas. Quando cheguei num estágio de conhecimento mais íntimo, cheguei ao ponto em que vi que montanhas não são montanhas, e águas não são águas. Mas agora que toquei na sua substância estou em paz. Porque agora vejo montanhas novamente como montanhas, e águas novamente como águas." (Qingyuan Xingsi)[1]
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Em agosto desse ano, fui ao Monte Fuji. O Mt. Fuji, ou Fuji-san (富士山) - como é chamado aqui no Japão -, é possivelmente o mais famoso símbolo Japonês. É um vulcão de 3776 metros, situado na borda entre os estados de Shizuoka e Yamanashi. Ao longo do ano inteiro, seus caminhos são abertos para quem quer que queira subí-lo (entretanto, as estações de descanso só ficam ocupadas durante o Verão, devido às condições mais favoráveis de escalada). Um dito popular aqui no Japão sugere que apenas um tolo nunca subiria o Fuji-san uma vez - e apenas um tolo o faria duas.
O Fuji-san tem 10 estações ao longo dos diferentes caminhos. Quando fui, nosso grupo começou a subir a partir da 5a estação. Chegamos às 10 da noite e planejamos atingir o topo às 4h30 - uma estimativa um tanto quanto otimista. Quando chegamos no Fuji-san a noite, não fazemos idéia do que está a nossa espera, e isso é muito bom! (Do contrário, acho que não teríamos motivação suficiente para encará-lo.) É tudo uma grande escuridão, com exceção das lanternas dos viajantes. De fato, só encontramos o caminho por onde deveríamos ir após seguir a fila de luzinhas, que lembrava mais um "enxame" de vaga-lumes. (Essa situação me lembrou algumas cenas do meu anime Japonês favorito, em que linhas intermináveis de pessoas andam vagarosamente por um vale deserto até um enorme desfiladeiro, onde elas se deixam cair para chegar no Mundo dos Mortos .[2])
Não há barulho lá em cima no Fuji-san. Não há sons de animais, não há rios, não há árvores: não há nada. Apenas as distantes luzes das estações, e o som cansado dos viajantes que se arrastam morro acima nos caminhos das pedras. Mesmo subindo em grupos, o sentimento de solidão é inevitável. Nas montanhas, no silêncio e na escuridão da noite, os ecos da mente ganham um volume incrivelmente alto.
No começo da jornada, o tempo estava bem agradável: fazia um dia típico de verão quando deixamos Tokyo: uns 35 ºC, quente e úmido; e o Fuji-san estava a refrescantes 23 ºC na estação 5 aquela noite. Porém, conforme adentrávamos na noite (e subíamos a montanha), a temperatura caiu bem abaixo de 10 ºC e uma garoazinha persistente nos pegou no meio do caminho. Em algum lugar entre as estações 8 e 9, já a mais de 3100 metros de altitude, me achei sozinho, sentado em uma pedra, todo molhado e tremendo. Olhando para cima, as luzes quentes da estação 9; para baixo, uma grande fila de lanternas de LED. Aparte disso, era tudo uma grande escuridão com um punhado de estrelas brilhando sobre minha cabeça, e algumas luzes da cidade num horizonte distante, espalhadas sob as nuvens.
Não faço idéia de quanto tempo fiquei lá observando as estrelas e olhando na escuridão, mas naquele breve instante compreendi porque os grandes sábios refugiam-se nas montanhas para meditar e orar. Buda foi para as montanhas quando deixou seu palácio à procura da verdade; Jesus se retirava às montanhas para conversar com Deus [3], e Moisés também [4]. Por sinal, diz-se que a primeira subida do Fuji-san que se tem notícia foi feita por um monge, em 663 d.C.
Nas montanhas, você está totalmente sozinho. Se você escorregar, dar um passo sequer mal-calculado, você morre. Se não usar toda sua concentração e não estiver totalmente presente e atento em cada passo, pode ser o fim da linha - especialmente à noite. Em algumas partes da subida, tivemos que literalmente escalar, usando ambos pés e mãos. Um movimento desatento, e toda sua vida - e dos outros que estão próximos - está em risco. Por isso, atenção é super importante.
Não sei explicar bem o porquê, mas existe uma certa sensação de sagrado no Fuji-san: todos falam em voz baixa e têm atitudes presentes enquanto escalam. Eu diria que é quase uma experiência religiosa - você vê a vida e a morte bem na frente do seu nariz, e o único responsável por segurar essa fina linha que as separa é você mesmo.
O mestre Dogen [5] dedicou um texto inteiro às montanhas e às águas, chamado Sutra das Montanhas e Águas (山水経) [6]. Nele, Dogen fala sobre as várias faces distintas das montanhas. Uma de suas principais instruções é: examine em detalhe as características do caminhar das montanhas. Mas, como podemos ver o caminhar das montanhas? Montanhas, mares e rios eram visões comuns dos monges naquela época, então falar sobre montanhas e águas era um método muito eficiente de ensiná-los sobre a realidade do nosso mundo. Por exemplo, nesse texto Dogen aborda o conceito de erosão e do ciclo da água. As montanhas realmente caminham: elas se decompõem lentamente pelo vento e suas partículas atingem o mundo inteiro. Se tornam novas montanhas. É assim que uma rocha pode parir um bebê rocha.
Como o mestre Qingyuan mencionou, quando começamos a estudar o Zen (e não apenas o Zen, mas a Natureza em si: Química, Biologia, Física, etc.), chegamos num ponto em que as coisas não parecem mais o que eram antes. Me lembro claramente quando comecei a estudar Química, eu via um copo de leite com açúcar não como um copo de leite com açúcar, mas sim como uma solução leitosa de glicose. E estou certo de que os botanistas não vêem as flores como nós vemos, nem os físicos têm o mesmo olhar que nós quando observam as estrelas. Mas, no fim das contas, quando você bebe aquele copo de leite com açúcar, é simplesmente um copo de leite com açúcar. Nada mais e nada menos.
Quando estávamos no Fuji-san, tremendo, com sono, e amaldiçoando o momento em que tivemos a estúpida ideia de subir naquele monte de pedras, minha amiga me disse: "Putz, eu achava o Fuji bonito antes quando eu via as fotos dele. Mas agora? Nem por foto vou querer ver ele de novo!"
Quando experimentamos as coisas diretamente, todos nossos conceitos caem por terra. Não há beleza, não há grandiosidade; não há nada de bom do Fuji-san quando estamos lá. Só há o frio, a dor nas costas e nas plantas dos pés, e arrependimento. Hoje em dia, quando falo do Fuji-san, eu o vejo como o via antes: uma grande, bela e imponente montanha - mas agora eu o conheço de verdade. E é por isso que eu o admiro muito mais.
"Há montanhas ocultas em tesouros. Há montanhas ocultas em pântanos. Há montanhas ocultas no céu. Há montanhas ocultas em montanhas. Há montanhas ocultas na ocultação. É assim que estudamos.
Um antigo Buda disse: "Montanhas são montanhas, águas são águas." Essas palavras não significam que montanhas são montanhas; elas querem dizer que montanhas são montanhas. Dessa forma, investigue as montanhas com afinco.
Quando você investiga as montanhas com afinco, isso se torna o esforço dentro das montanhas. Essas montanhas e águas de si mesmas tornam-se pessoas sábias e mestres."
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Nascer do sol no Fuji-san, 御来光 (goraiko): "honrada chegada da luz".
É tão frio lá, que tudo que você quer é ficar ali, quieto, sob o Sol; sentindo seu abraço quente, antes de começar a jornada de volta. |
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Notas and Referências:
[1] Qingyuan [青原, Jp. Seigen] (660-740) foi um monge chinês, um dos sucessores do Dharma de Huineng e, assim, o 7º patriarca na linhagem Zen de Bodhidarma (e 34º a partir do Buda Shakyamuni). De sua linhagem, três das principais escolas Zen surgiram: Caodong (曹洞, jp: Soto), Yunmen (雲門, jp: Unmon) and Fayan (法眼, jp: Hougen). De: Shi Daoyuan, "Transmission of the Lamp", ca. 1004 d.C. Em: Watts, A. The Way of Zen. Vintage: New York, 1989. p.126.
[2] Nos Cavaleiros do Zodíaco, o limbus é descrito como um lugar onde as almas erram até encontrarem esses abismos, onde podem cair para a morte eterna. Veja esse vídeo como exemplo.
[3] Por exemplo, no evangelho de Lucas, capítulo 22, verso 39, Jesus é retratado no monte das Oliveiras, onde passa uma noite em orações antes de sua captura e crucificação.
[4] De acordo com o livro do Êxodo (capítulo 24), Deus disse a Moisés para que subisse o Mt. Sinai, de modo a dá-lo algumas novas ordens que preparou para Seu povo (os 10 mandamentos).
[5] Eihei Dogen (永平道元) (1200-1253) foi um monge Japonês. O primeiro monge da escola Zen Caodong (Soto, em Japonês) a trazer os ensinamentos para o Japão. Ele é o 24º patriarca na linhagem de Bodhidarma (e 51º a partir do Buda Shakyamuni). Dogen é considerado um dos mais renomandos filósofos Japoneses, e escreveu um tratado extenso sobre Budismo chamado "O Tesouro do Verdadeiro Olho do Dharma" (正法眼蔵, Shobogenzo), uma enorme compilação de 95 capítulos expressando os fundamentos do Budismo através da interpretação da escola Caodong.
[6] Escrito em 1240 e apresentado a monges de um monastério na cidade de Uji, em Kyoto.