novembro 08, 2011

Nosso pão de cada dia


"Vocês, orem assim:
'Pai nosso, que estás nos céus, 
Santificado seja o teu nome.
Venha o teu Reino;
seja feita a tua vontade, 
Assim na terra como no céu.
Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia.
Perdoa as nossas dívidas, 
assim como perdoamos aos nossos devedores.
E não nos deixes cair em tentação,
Mas livra-nos do mal.'" (Jesus)[1]

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Nosso pão de cada dia. Jesus não disse "nosso banquete de cada dia", "nosso Big Mac de cada dia", ou "nosso almoço num restaurante caríssimo de cada dia". Ele disse pão. É claro que o significado é muito mais profundo do que isso [2], mas podemos sentir a humildade requerida das nossas orações, a mesma humildade que deve ser cultivada em nossos corações.

Pão pode ser uma comida simples para muitos de nós hoje em dia. Mas mesmo a mais simples das comidas tem o valor de todo o Universo. Desde as sementinhas do trigo, plantadas por um campo enorme, uma quantidade incontável de pessoas está envolvida no simples ato de fazer a farinha [3]. Normalmente, demora de 3 a 4 meses entre plantar e colher o trigo, e a plantação deve ser supervisionada nesse interim. Então, dá pra imaginar que existe muita gente (até mesmo crianças) envolvidas desde a sementinha até a farinha pronta chegar nas mãos do padeiro da sua padaria preferida e que foi usada pra fazer o seu pão. Dá pra aumentar a lista ainda mais, se incluirmos todas as pessoas envolvidas na fabricação da sacola que você usa para trazer o pão da padaria até sua mesa. E eu só falei de pessoas até agora! Pro trigo crescer, ele se alimentou dos nutrientes do solo, e recebeu energia do Sol e águas das chuvas. E, claro, todo o esforço das minhocas e de todos aqueles pequenos seres vivos que, pouco a pouco, mastigaram e quebraram o solo nos nutrientes necessários para que o trigo crescesse.

Há o esforço de todo o Universo em uma única fatia de pão. O que temos feito para merecê-la?

Nos templos Zen-budistas japoneses, nós normalmente recitamos um verso antes das refeições, chamado "As Cinco Reflexões" (Gokan no ge, 五観の偈) [4].

"Primeiro: Refletimos sobre o esforço que nos trouxe este alimento, e consideramos como ele chegou até nós;
Segundo: Refletimos sobre nossa virtude e nossa prática, e se somos merecedores desta oferta;
Terceiro: Consideramos a gula um obstáculo da liberdade da mente;
Quarto: Consideramos este alimento como o medicamento para sustentar nossa vida;
Quinto: Para realizarmos o caminho, recebemos agora este alimento." 

Em Japonês:

 一には功の多少を計(はか)り彼(か)の来処(らいしょ)を量(はか)る。
 二には己が徳行(とくぎょう)の全欠を忖(はか)つて供(く)に応(おう)ず。
 三には心を防ぎ過(とが)を離るることは貪等(とんとう)を宗(しゅう)とす。
 四には正に良薬を事とすることは形枯(ぎょうこ)を療(りょう)ぜんが為なり。
 五には成道(じょうどう)の為の故に今此(いまこ)の食(じき)を受く。

Todo o universo está contido no seu cookie. E esse mesmo cookie vai ser parte do seu corpo. Cada alimento é precioso: pense nisso. Na época de Buda, os monges viviam de esmolas: eles só podiam comer aquilo que cabia em suas tigelas. Eu tenho certeza que nem todos os alimentos que eles recebiam eram gostosos; talvez alguns fossem até restos. Mas Buda os instruiu a recebê-los todos com igualdade, a comê-los com igualdade, e a serem igualmente gratos por cada migalha oferecida. Sem julgamento ou discriminação, eles todos foram completamente satisfeitos - mesmo com apenas um grão de arroz.



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Notas:
[1] Evangelho de Mateus, capítulo 6. Tradução da Nova Versão Internacional (NIV).
[2] "Pão de cada dia" significa muito amis do que o pão por si só. Significa a provisão de tudo aquilo que a terra pode nos dar e que precisamos para viver: ar, comida, emprego, etc. Algumas linhas teológicas discutem que esse verso também inclui o "pão espiritual" (i.e. bençãos), mas não concordo. Isso já está incluso no verso "Venha Teu Reino".
[3] Essa página tem uma explicação legal (inglês).
[4] Composto pelo monge chinês Dàoxuan [Dousen, in Japanese] (596 - 667 d.C.). Pode encontrar esse texo nessa página, junto com todas as recitações feitas nas cerimônias matinais.

Montanhas ambulantes

"Antes de estudar o Zen por trinta anos, eu via montanhas como montanhas, e águas como águas. Quando cheguei num estágio de conhecimento mais íntimo, cheguei ao ponto em que vi que montanhas não são montanhas, e águas não são águas. Mas agora que toquei na sua substância estou em paz. Porque agora vejo montanhas novamente como montanhas, e águas novamente como águas." (Qingyuan Xingsi)[1]






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Em agosto desse ano, fui ao Monte Fuji. O Mt. Fuji, ou Fuji-san  (富士山) - como é chamado aqui no Japão -, é possivelmente o mais famoso símbolo Japonês. É um vulcão de 3776 metros, situado na borda entre os estados de Shizuoka e Yamanashi. Ao longo do ano inteiro, seus caminhos são abertos para quem quer que queira subí-lo (entretanto, as estações de descanso só ficam ocupadas durante o Verão, devido às condições mais favoráveis de escalada). Um dito popular aqui no Japão sugere que apenas um tolo nunca subiria o Fuji-san uma vez - e apenas um tolo o faria duas.

O Fuji-san tem 10 estações ao longo dos diferentes caminhos. Quando fui, nosso grupo começou a subir a partir da 5a estação. Chegamos às 10 da noite e planejamos atingir o topo às 4h30 - uma estimativa um tanto quanto otimista. Quando chegamos no Fuji-san a noite, não fazemos idéia do que está a nossa espera, e isso é muito bom! (Do contrário, acho que não teríamos motivação suficiente para encará-lo.) É tudo uma grande escuridão, com exceção das lanternas dos viajantes. De fato, só encontramos o caminho  por onde deveríamos ir após seguir a fila de luzinhas, que lembrava mais um "enxame" de vaga-lumes. (Essa situação me lembrou algumas cenas do meu anime Japonês favorito, em que linhas intermináveis de pessoas andam vagarosamente por um vale deserto até um enorme desfiladeiro, onde elas se deixam cair para chegar no Mundo dos Mortos .[2])

Não há barulho lá em cima no Fuji-san. Não há sons de animais, não há rios, não há árvores: não há nada. Apenas as distantes luzes das estações, e o som cansado dos viajantes que se arrastam morro acima nos caminhos das pedras. Mesmo subindo em grupos, o sentimento de solidão é inevitável. Nas montanhas, no silêncio e na escuridão da noite, os ecos da mente ganham um volume incrivelmente alto.

No começo da jornada, o tempo estava bem agradável: fazia um dia típico de verão quando deixamos Tokyo: uns 35 ºC, quente e úmido; e o Fuji-san estava a refrescantes 23 ºC na estação 5 aquela noite. Porém, conforme adentrávamos na noite (e subíamos a montanha), a temperatura caiu bem abaixo de 10 ºC e uma garoazinha persistente nos pegou no meio do caminho. Em algum lugar entre as estações 8 e 9, já a mais de 3100 metros de altitude, me achei sozinho, sentado em uma pedra, todo molhado e tremendo. Olhando para cima, as luzes quentes da estação 9; para baixo, uma grande fila de lanternas de LED. Aparte disso, era tudo uma grande escuridão com um punhado de estrelas brilhando sobre minha cabeça, e algumas luzes da cidade num horizonte distante, espalhadas sob as nuvens.

Não faço idéia de quanto tempo fiquei lá observando as estrelas e olhando na escuridão, mas naquele breve instante compreendi porque os grandes sábios refugiam-se nas montanhas para meditar e orar. Buda foi para as montanhas quando deixou seu palácio à procura da verdade; Jesus se retirava às montanhas para conversar com Deus [3], e Moisés também [4]. Por sinal, diz-se que a primeira subida do Fuji-san que se tem notícia foi feita por um monge, em 663 d.C.

Nas montanhas, você está totalmente sozinho. Se você escorregar, dar um passo sequer mal-calculado, você morre. Se não usar toda sua concentração e não estiver totalmente presente e atento em cada passo, pode ser o fim da linha - especialmente à noite. Em algumas partes da subida, tivemos que literalmente escalar, usando ambos pés e mãos. Um movimento desatento, e toda sua vida - e dos outros que estão próximos - está em risco. Por isso, atenção é super importante.

Não sei explicar bem o porquê, mas existe uma certa sensação de sagrado no Fuji-san: todos falam em voz baixa e têm atitudes presentes enquanto escalam. Eu diria que é quase uma experiência religiosa - você vê a vida e a morte bem na frente do seu nariz, e o único responsável por segurar essa fina linha que as separa é você mesmo.

O mestre Dogen [5] dedicou um texto inteiro às montanhas e às águas, chamado Sutra das Montanhas e Águas (山水経) [6]. Nele, Dogen fala sobre as várias faces distintas das montanhas. Uma de suas principais instruções é: examine em detalhe as características do caminhar das montanhas. Mas, como podemos ver o caminhar das montanhas? Montanhas, mares e rios eram visões comuns dos monges naquela época, então falar sobre montanhas e águas era um método muito eficiente de ensiná-los sobre a realidade do nosso mundo. Por exemplo, nesse texto Dogen aborda o conceito de erosão e do ciclo da água. As montanhas realmente caminham: elas se decompõem lentamente pelo vento e suas partículas atingem o mundo inteiro. Se tornam novas montanhas. É assim que uma rocha pode parir um bebê rocha.

Como o mestre Qingyuan mencionou, quando começamos a estudar o Zen (e não apenas o Zen, mas a Natureza em si: Química, Biologia, Física, etc.), chegamos num ponto em que as coisas não parecem mais o que eram antes. Me lembro claramente quando comecei a estudar Química, eu via um copo de leite com açúcar não como um copo de leite com açúcar, mas sim como uma solução leitosa de glicose. E estou certo de que os botanistas não vêem as flores como nós vemos, nem os físicos têm o mesmo olhar que nós quando observam as estrelas. Mas, no fim das contas, quando você bebe aquele copo de leite com açúcar, é simplesmente um copo de leite com açúcar. Nada mais e nada menos.

Quando estávamos no Fuji-san, tremendo, com sono, e amaldiçoando o momento em que tivemos a estúpida ideia de subir naquele monte de pedras, minha amiga me disse: "Putz, eu achava o Fuji bonito antes quando eu via as fotos dele. Mas agora? Nem por foto vou querer ver ele de novo!"

Quando experimentamos as coisas diretamente, todos nossos conceitos caem por terra. Não há beleza, não há grandiosidade; não há nada de bom do Fuji-san quando estamos lá. Só há o frio, a dor nas costas e nas plantas dos pés, e arrependimento. Hoje em dia, quando falo do Fuji-san, eu o vejo como o via antes: uma grande, bela e imponente montanha - mas agora eu o conheço de verdade. E é por isso que eu o admiro muito mais.

"Há montanhas ocultas em tesouros. Há montanhas ocultas em pântanos. Há montanhas ocultas no céu. Há montanhas ocultas em montanhas. Há montanhas ocultas na ocultação. É assim que estudamos.
Um antigo Buda disse: "Montanhas são montanhas, águas são águas." Essas palavras não significam que montanhas são montanhas; elas querem dizer que montanhas são montanhas. Dessa forma, investigue as montanhas com afinco.
Quando você investiga as montanhas com afinco, isso se torna o esforço dentro das montanhas. Essas montanhas e águas de si mesmas tornam-se pessoas sábias e mestres."


Nascer do sol no Fuji-san, 御来光 (goraiko): "honrada chegada da luz".
 É tão frio lá, que tudo que você quer é ficar ali, quieto, sob o Sol; sentindo seu abraço quente, antes de começar a jornada de volta.

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Notas and Referências:
[1] Qingyuan [青原, Jp. Seigen] (660-740) foi um monge chinês, um dos sucessores do Dharma de Huineng e, assim, o 7º patriarca na linhagem Zen de Bodhidarma (e 34º a partir do Buda Shakyamuni). De sua linhagem, três das principais escolas Zen surgiram: Caodong (曹洞, jp: Soto), Yunmen (雲門, jp: Unmon) and Fayan (法眼, jp: Hougen). De: Shi Daoyuan, "Transmission of the Lamp", ca. 1004 d.C. Em: Watts, A. The Way of Zen. Vintage: New York, 1989. p.126.

[2] Nos Cavaleiros do Zodíaco, o limbus é descrito como um lugar onde as almas erram até encontrarem esses abismos, onde podem cair para a morte eterna.  Veja esse vídeo como exemplo.


[3] Por exemplo, no evangelho de Lucas, capítulo 22, verso 39, Jesus é retratado no monte das Oliveiras, onde passa uma noite em orações antes de sua captura e crucificação.

[4] De acordo com o livro do Êxodo (capítulo 24), Deus disse a Moisés para que subisse o Mt. Sinai, de modo a dá-lo algumas novas ordens que preparou para Seu povo (os 10 mandamentos). 

[5] Eihei Dogen (永平道元) (1200-1253) foi um monge Japonês. O primeiro monge da escola Zen Caodong (Soto, em Japonês) a trazer os ensinamentos para o Japão. Ele é o 24º patriarca na linhagem de Bodhidarma (e 51º a partir do Buda Shakyamuni). Dogen é considerado um dos mais renomandos filósofos Japoneses, e escreveu um tratado extenso sobre Budismo chamado "O Tesouro do Verdadeiro Olho do Dharma" (正法眼蔵, Shobogenzo), uma enorme compilação de 95 capítulos expressando os fundamentos do Budismo através da interpretação da escola Caodong.

[6] Escrito em 1240 e apresentado a monges de um monastério na cidade de Uji, em Kyoto. 

Sendo um perdedor!


Quando Dogen retornou da China, alguns monges da escola Tendai o perguntaram: "Dogen, quais ensinamentos você trouxe da China, para dizer que são os verdadeiros ensinamentos de Buda?!" Ele, então, respondeu: "Olhos na horizontal. Nariz, na vertical."


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Eu não estava lá, mas imagino a cara torta que os monges fizeram para ele. "Esse cara é louco," eles devem ter pensado. Em uma das primeiras vezes que fui ao Busshinji, a alguns anos, o monge líder - Jisho-sensei -, disse aos atendentes daquele zazen de sábado: "Se vocês vieram aqui hoje esperando ganhar alguma coisa, perderam a viagem. Aqui, você não ganhará nada: apenas perderá." Naquele momento, eu ri e pensei: "Yeah, esse é o lugar!"

Aqui no Japão pude conhecer uma variedade enorme de pessoas, dos mais diversos lugares e fés. Aprendi - e tenho aprendido - bastante com cada um deles. É interessante notar quantos pré-conceitos que trazemos conosco quando conhecemos alguém, e como normalmente estamos errados. Eu tinha minhas ideias e conceitos sobre muçulmanos e árabes, e todos se provaram errados; toda a concepção que eu tinha de Tailandeses, Malaios, Indonésios e Vietnamitas caiu por terra. E, mesmo sobre o Japão, minhas pré-concepções estavam erradas.

Obviamente, ter pré-conceitos a respeito de algo não é uma coisa estranha ou ruim: é natural. Estamos constantemente absorvendo informações sobre tudo, por todos os meios possíveis. Temos uma mente pensante, e fomos instruídos a usá-la como meio de previsão desde quando éramos pequenos: não precisamos enfiar nossos dedos na tomada para saber que o resultado não vai ser agradável. Ter pré-conceitos é algo bastante útil, mas nem sempre. Às vezes criamos tantos pré-conceitos em nossa mente, que começamos a julgar pessoas, coisas ou eventos de um modo tão negativo que isso nos impede de ter experiências únicas. Há uma símile no Budismo a respeito de uma xícara de chá: ninguém poderá servi-lo enquanto sua xícara estiver cheia; é necessário esvaziá-la antes.

Buda ensinou um grupo de monges de Kalama a nunca confiar, praticar ou acreditar em algo sem uma inspeção bem cuidadosa, e se esse 'algo' conduzirá a bons frutos. Esse é um método interessante de analisar nossos pensamentos e pré-conceitos; e também um excelente método para analisar nosso comportamento frente ao mundo. Os conselhos de Buda são dados no Anguttara Nikaya 3.65:

  • Ma anussavena: Não acredite em algo simplesmente porque foi passado e recontado de geração em geração. [Não seja conduzido pelo que te mandam fazer.]
  • Ma paramparaya: Não acredite em algo simplesmente porque se tornou um hábito comum. [Não seja guiado por qualquer coisa que veio de gerações passadas.]
  • Ma itikiraya: Não acredite em algo simplesmente porque é lugar-comum. [Não seja guiado por ditos ou opinião popular.]
  • Ma Pitakasampadanena: Não acredite em algo só porque está citado num texto. [Não seja guiado por escrituras.]
  • Ma takkahetu: Não acredite em algo somente com base no raciocínio lógico. [Não seja guiado por mera lógica.]
  • Ma nayahetu: Não acredite em algo apenas porque está de acordo com sua filosofia. [Não seja guiado por mera dedução ou inferência.]
  • Ma akaraparivitakkena: Não acredite em algo apenas porque apela ao "senso comum". [Não seja guiado considerando apenas a aparência externa.]
  • Ma ditthinijjhanakkhantiya: Não acredite em algo só porque você gosta da idéia. [Não seja guiado por noções pré-concebidas.]
  • Ma bhabbarupataya: Não acredite em algo só porque quem professou parece ser de confiança. [Não seja guiado pelo que parece aceitável.]
  • Ma samano no garu ti: Não acredite em algo pensando, "Isso é o que meu mestre diz".
Bom, provavelmente notando a expressão confusa dos monges, ele continua e diz:

"Kalamas, quando vocês souberem por si mesmos, 'Essas coisas são íntegras, louvadas pelo sábio; quando adotadas e conduzidas, elas levam ao bem-estar, à prosperidade e à felicidade,' então vocês devem aceitá-las e praticá-las."

É uma instrução bem prática que quer dizer: "Ei! Presta atenção! Pensa um pouco no que você tá fazendo. É algo que realmente vale a pena fazer?" Da mesma forma que lidamos com nossa filosofia, religião ou o que quer que seja, devemos lidar com nossos pensamentos e hábitos. O que vale a pena ser mantido? 

Depois de uma cuidadosa e sábia análise, talvez percebamos que - ao invés de coisas para serem ganhas - temos é um monte de coisa extra pra perder.


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Leituras relacionadas:
The Kalama Sutta @ The Gold Scales website. Onde eu encontrei a versão que postei aqui. Eles têm uma excelente discussão a respeito do texto também.
Kalama Sutta @ Access to Insight. Versão do Thanissaru Bikkhu desse sutta. Vale a pena ler. 



Mama, Mama!

Um dia desses, voltando da universidade, vi um menininho. Ele devia ter entre 7 e 9 anos de idade. Sua mãe estava ao seu lado, e eles estavam bem atrás da cabine do condutor. Aqui no Japão, normalmente é possível ver o maquinista de dentro do vagão: há uma espécie de janelinha de vidro entre sua cabine e o resto dos passageiros. Dali, o menino podia ouvir o maquinista e vê-lo trabalhar. 

"Mama, mama! Quero ser maquinista!", ele dizia para sua mãe. Ela apenas sorria modestamente, sem tirar os olhos da janela do trem. Estava ali, mas a mente estava longe. Em que pensava, será, que era mais importante que aquele pequenino sonhador ali do seu lado? A cada estação que passava, o menino repetia todos os anúncios que o co-piloto dava, e falava junto com o maquinista o "yoshi!" (que os condutores sempre falam após checar todos os instrumentos e dar partida na composição).

"Mama! Chegamos em Ooimachi! Foi super rápido, né, vindo de Hatanodai? E, olha lá! O trem do outro lado, na plataforma de embarque  número 2 (!), é o trem expresso com destino a Mizonokuchi!", ele contava, excitado, para sua mãe após chegarem na parada final. Ela apenas sorriu para ele e o puxou pela mão para que pudessem sair correndo após a abertura das portas.

Não os vi mais. Mas pude ouvir, no meio dos barulhos aleatórios da estação, sua voz empolgada falando o quão bonitos eram os faróis do trem.

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Quando eu era pequeno, eu também adorava trens. De acordo com meu (já falecido) avô, eu costumava dizer que queria ser um "borracheiro de trem". Por quê? Não faço idéia. Eu adorava passear de metrô, eles pareciam mágica! E eu, possivelmente, admirava o trabalho dos borracheiros: aqueles senhores encardidos todos cobertos com graxa dos pés à cabeça. Meu avô foi mecânico. E eu realmente o admirava, e queria ser como ele quando crescesse; mas também adorava trens! Então, a solução era ser um borracheiro que trabalhasse com trens! Claro, trens não têm pneus. Eu não sabia disso na época mas, acho que mesmo que soubesse, não me importaria. Ainda iria querer ser borracheiro do metrô.

Quando somos crianças, não temos preconceitos: tudo é maravilhoso e incrível, e cada profissão é especial do seu jeito. Não existe bom ou ruim; não existe o sonho de ser rico, de ter status. Apenas fazemos aquilo que nos encanta. Eu nunca quis ser um médico ou advogado quando era criança. Depois de um tempo, acabei tendo que desistir da idéia de ser borracheiro do metrô, e sonhava em ser prefeito de São Paulo! Ao menos era esse meu objetivo no 4o ano do ensino fundamental. Não faço idéia do porquê, mas eu era uma criança bem política. Lembro de dirigir minha pequena bicicletinha azul com a bandeira de um político local (Maluf!). E lembro de desenhar um plano para limpar o Rio Tietê em um trabalho sobre o que eu seria quando crescesse.

Crianças são seres maravilhosos. Você nunca sabe o que elas aprontarão, o que se tornarão. Mas eles são verdadeiramente os únicos humanos que conseguem ser genuinamente felizes. Deveriamos aprender com elas; aprender a recuperar aquele sentimento de maravilhamento por tudo; aprender a se sentir impressionado pelo foco do condutor do trem. Aprender a ficar maravilhado com o quão rápido chegamos nos lugares quando pegamos aquelas caixas de metal que se movem sobre trilhos. Deveríamos aprender com eles como viver cada momento como um momento novo e único.

"Yoshi!"