outubro 03, 2012

O Bárbaro de Olhos-Azuis


Num lugar sem direções; numa superfície sem fronteiras
Como pode existir algo maior que um fio de cabelo no Outono? (1)
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No dia 5 de Outubro celebramos - dentro da escola Soto da tradição Zen budista - o dia de Bodhidharma. Mas quem foi esse monge, para merecer um dia especial?

Bodhidharma (बोधिधर्म em sânscrito; 菩提達摩 em Chinês [Pútídámó] e Japonês [Bodaidaruma]) foi um monge indiano que viveu por volta do século V. Discípulo de Prajnatara, Bodhidharma é tido como o 28º patriarca do Zen budismo. Segundo os relatos dos mestres Dàoyuán e Keizan, Bodhidharma nasceu no reino de Kanchipuram, ao sul da Índia, em uma família da casta de guerreiros (Kshatriya) e tinha outros dois irmãos.

Certa ocasião, o venerável mestre Prajnatara resolveu testar a sabedoria dos três irmãos. Tomando uma joia que lhe havia sido ofertada por Bodhidharma, perguntou: "Há algo que se compare a essa jóia?" Os dois irmãos lhe responderam: "Essa joia é o mais precioso dos sete tesouros, e nada pode ultrapassá-la. Ninguém sem o poder do Venerável mestre Prajnatara poderia recebê-la." Bodhidharma (que então se chamava Bodhitara), por sua vez, lhe respondeu: 
"Esse é um tesouro mundano, e não se qualifica como o mais precioso dos tesouros. Eu considero o tesouro do Darma o melhor dos tesouros. A luz dessa joia é uma luz mundana, e não se qualifica como a mais preciosa das luzes. Eu considero a luz da sabedoria como a mais preciosa. O brilho dessa joia é meramente mundano, e não se qualifica como o brilho mais precioso. Eu considero o brilho da mente como o mais precioso dos brilhos. A luz resplandecente dessa joia não pode iluminar nada além de si mesma, mas precisa da luz da sabedoria para ser discernida. Uma vez que ela seja compreendida extensivamente, sabe-se que trata-se de uma joia; uma vez que se sabe que é uma joia, clarifica-se o fato de que ela é preciosa. Clarificando o fato de que ela é preciosa, sua preciosidade não é por si mesma preciosa. Quando se discerne a joia, a joia não é por si mesma joia. O fato de a joia não ser uma joia o é porque é necessário usar a joia da sabedoria para discernir a joia mundana. O fato de a preciosidade não ser preciosa o é porque é necessário usar o tesouro da sabedoria para clarificar o tesouro do Darma. Como o caminho do mestre é o tesouro da sabedoria, o senhor agora experiencia este tesouro mundano. Então, quando o mestre possui o Darma, esse tesouro aparece; e quando os seres possuem o Darma, esse tesouro aparece. Quando os seres têm o Darma, o tesouro da Mente também aparece."

Ao ouvir essa explicação, o mestre Prajnatara sabia que um sábio estava ali diante de si. Ele entendeu que Bodhitara seria seu herdeiro do Darma, mas esperou que as condições amadurecessem. Então, em outra ocasião, lhe perguntou: "o que, dentre todas as coisas, é sem forma?" (2) Bodhitara respondeu: "Não-surgimento é sem forma." Prajnatara interpelou: "Qual, dentre todas as coisas, é a maior?" Bodhitara respondeu: "A verdadeira natureza das coisas é a maior." (3)

Após sua ordenação monástica, Bodhitara permaneceu por sete dias em meditação no salão de Prajnatara, que lhe instruiu extensivamente aos princípios do zazen. O mestre ouviu e despertou à suprema sabedoria. Prajnatara então lhe disse: "Você agora já descobriu tudo que é necessário saber sobre as coisas. 'Dharma' significa 'grandeza da compreensão', então você agora se chamará 'Dharma'." E, assim, ele mudou seu nome para Bodhidharma.

Prajnatara pediu a Bodhidharma que partisse para a China e espalhasse o verdadeiro Darma por lá, sessenta e sete anos depois que seu mestre falecesse. Bodhidharma lhe perguntou: "Eles serão capazes de tornarem-se grandes receptáculos do Darma? Surgirão dificuldades ao longo do tempo?" Prajnatara lhe disse: "Serão muitos os que despertarão naquela terra. Algumas pequenas dificuldades podem surgir, mas você será capaz de lidar com elas. Quando chegar lá, não fique no Sul. Eles apenas valorizam o trabalho mundano ali, e não enxergam os verdadeiros princípios dos budas."

Sessenta e um anos após a morte de Prajnatara, Bodhidharma partiu para a China, pelo mar, desembarcando onde hoje é Guangzhou em algum momento da dinastia Liu-Song (~ 479 d.C.). Era uma China dividida pela rivalidade étnica, domínios feudais, e uma guerra civil prolongada entre o norte e o sul do país. Nos séculos antes de sua chegada, a China viveu conflitos, desintegração e caos. Aqueles que abraçaram o ensino de Bodhidharma aguentaram e sofreram ainda mais. Eles já conheciam o Budismo por vários séculos antes de Bodhidharma aparecer por lá; contudo, seu Zen (Ch'an) tocou a imaginação de um povo cansado do mundo. Governantes, aristocratas e cidadãos comuns eventualmente abraçaram as práticas religiosas ligadas a ele. Os ensinamentos de um sramana solitário que desembarcou por uma prancha de madeira em Guangzhou num país caótico, eventualmente o conquistaram, e se espalharam muito além de suas bordas.

Segundo Dàoxuān (4):
"Bodhidharma foi um Bramã do Sul da Índia. Sua sabedoria espiritual era expansiva. Todos que o ouviam tornavam-se iluminados. Ele era devoto da prática Mahayana da mente profunda e solitária, e atingiu elevada compreensão de todos os aspectos da meditação. Graças à sua compaixão por essa terra [China], ele propagou os ensinamentos Yogacara. Chegou inicialmente no Sul da China durante a dinastia Liu-Song. No fim de sua vida, viajou novamente para viver sob o governo Wei (a dinastia que governava o norte do país). Onde quer que ele fosse, ensinava o Zen. Durante seu tempo, ensinou por todo o país. Após ouvir pela primeira vez os ensinamentos de samadhi [meditação], muitos se revoltaram contra ele. Porém, houveram dois monges, chamados Dàoyù (道育) e Huìkě (慧可), que tornaram-se seus discípulos. (...) Bodhidharma reconheceu a sinceridade deles, e lhes ensinou o verdadeiro Darma, como a pacificação da mente através da meditação enquanto mirando uma parede (5); como a filosofia conhecida como as "Quatro Práticas" (6); como a liberação dos seres em face ao criticismo; e como não usar demônios para assustar as pessoas como um método de exortação. Bodhidharma disse: "Há muitas portas para penetrar o Caminho, mas todas convergem em essencialmente duas: entrar pelos princípios, ou entrar pela prática. O primeiro caso resume-se em aceitar a doutrina iluminada de que todos os seres possuem a mesma natureza verdadeira, que é obstruída de nossa visão pelos apegos mundanos. Essa doutrina nos leva a esquecer o falso e retornar ao verdadeiro quando sentamos frente a uma parede, onde não há si mesmo e nem o outro; e onde sagrado e mundano são o mesmo; resolutos e imóveis, não perseguindo quaisquer ensinamentos externos, permanecendo solitariamente em não-ação de acordo com o misterioso Caminho. Isso é o chamado 'entrando no caminho pelo princípio.' Entrar o caminho pela prática envolve quatro práticas essenciais derivadas dos dez mil darmas (...) [As "Quatro Práticas" são resumidas, e podem ser expressas em (i) aceitar as condições; (ii) dedicar-se à prática com as condições encontradas; (iii) procurar nada mais do que isso, e (iv) aderir aos ensinamentos budistas.]" Bodhidharma, com esses métodos, converteu o povo de Wei. Os nobres que reconheceram a verdade o honraram, e conheceram a Iluminação. Registros de seus ensinos agora circulam pelo mundo. Ele pessoalmente dizia ter 150 anos de idade. Sua missão era viajar e ensinar. Não se sabe onde ele faleceu."

Bodhidharma tomou para si uma missão digna de um bodhisattva. O budismo, tal como existia na China à época, começava a mesclar-se com o controle imperial. O imperador Wu - contemporâneo de Bodhidharma - tornara-se um praticante budista fervoroso, construindo diversos templos espalhados pelo país e - por vezes - abandonando seu próprio palácio para viver uma vida ascética em meio aos demais monges. Uma atitude louvável; porém, por trás dessa inocente dedicação, estava a aspiração do governo em colocar sob sua jurisdição a única classe que, até então, estava livre de dobrar-se aos pés do imperador: o clero. O imperador Wu, astutamente, conseguiu estabelecer uma rede de influência imperial sobre os monastérios budistas (através de um "ministério monástico", com suas diretrizes, regras e patrocínio governamental) e colocar-se como figura central acima dos demais monges do país. Bodhidharma, em contrapartida, não admitia a submissão da prática budista a um imperador e instruiu veementemente seus discípulos para longe de quaisquer influências da casa imperial. Bodhidharma era, portanto, visto como um rebelde pela côrte que, apesar disso, ainda o tinha em alta estima. Sua coragem, determinação e dedicação permitiram que o espírito do Zen fosse re-introduzido livre de demais influências políticas à China. Devido à sua preocupação com a independência budista, Bodhidharma e seus discípulos sofreram perseguição pelas escolas imperiais durante um bom tempo, além de viverem sob críticas sobre seus comportamentos: como não recebiam ajuda imperial, os discípulos de Bodhidharma tinham que criar seus próprios meios de sobrevivência, através de atividades como cultivo de alimentos - o que era proibido pelo código de conduta monástico à época. 

A importância de Bodhidharma - não apenas para o Zen, mas para o imaginário coletivo Chinês - é inigualável. 

Segue um trecho dos comentários do mestre Keizan (7) a respeito desse grande monge:

Portanto, vocês devem entender que este exemplo do Bodhidharma mostra que atingindo o reino [de sabedoria ilimitada] através de um cuidadoso discernimento, vocês irão entender na mesma hora o que buda e os demais patriarcas experimentaram, e clarificarão o que os antigos budas já verificaram; e tornar-se-ão descendentes de todos os budas e patriarcas. Ainda que ele aparentemente possuísse apenas uma sabedoria natural, ele soube despertar para suprema sabedoria do Darma. Posteriormente, Bodhidharma tomou todo cuidado para guardar e proteger o Darma no futuro. Ele serviu ao lado de seu mestre e investigou extensivamente e em detalhes. Passou sessenta anos sem esquecer a predição sobre seu futuro e, depois, mais três anos cruzando o oceano. Por fim, chegou em uma terra desconhecida. Durante seus nove anos de zazen (8), adquiriu grande capacidade e, pela primeira vez, espalhou o verdadeiro Darma do Tathagata na China, quitando seus débitos para com seu mestre. Suas dificuldades foram as maiores; suas austeridades, as mais severas.
Contudo, estudantes nesses dias de hoje ainda esperam que seja fácil, apesar da degeneração dos tempos e de fracas capacidades. Sinto que pessoas assim - que dizem que entenderam o que não entenderam; que são arrogantes e orgulhosos - deveriam retirar-se (9). Caros, se vocês penetrarem extensivamente nessa estória, entenderem sua imponência cada vez mais, esmagarem a mente e abandonarem o corpo; e compreenderem intimamente o Darma, vocês terão a ajuda secreta dos budas e compartilharão diretamente daquilo que todos os velhos patriarcas provaram. Não pensem que uma fatia de conhecimento ou metade de uma compreensão são suficientes.

Bodhidharma, antes de falecer, transmitiu o Darma a quatro discípulos, num episódio conhecido como pele, carne, ossos e medula (10):
Bodhidharma perguntou, "Será que cada um de vocês poderia me demonstrar seu entendimento?"
Dàofú (道孚) foi à frente e disse: "Não está preso a palavras e frases; nem é separado de palavras e frases. Essa é a função do Darma."
Bodhidharma: "Você atingiu minha pele."
A monja Zōngzhǐ (宗旨) levantou-se e disse: "É como a visão gloriosa do Buda Akshobhya. Uma vez visto, não é necessário vê-lo novamente."
Bodhidharma: "Você atingiu minha carne."
Dàoyù (道育) disse, "Os quatro elementos são todos vazios. Os cinco skandhas não têm uma existência real. Nem um único dharma pode ser apreendido."
Bodhidharma: "Você atingiu meus ossos."
Finalmente, Huìkě (慧可) foi à frente, prostrou-se profundamente em silêncio e permaneceu de pé, em riste.
Bodhidharma disse: "Você atingiu minha medula."

Na tradição do Zen, consideramos os patriarcas da linhagem continuada por Huìkě; porém - como enfatizado pelo mestre Dōgen - todos os discípulos de Bodhidharma atingiram entendimento completo.

Para terminar, deixo uns versos atribuídos ao próprio Bodhidharma (11):

不立文學 (bù lì wénxué)
教外別傳 (jiāo wài bié zhuàn)
直指人心 (zhí zhǐ rénxīn)
見性成佛 (jiàn xìng chéng fú)

Não fundamentada em palavras,
Uma transmissão especial além das escrituras
Aponta diretamente à sua mente.
Observe sua própria natureza e torne-se Buda.

Que possamos todos nos aprofundar na prática de Bodhidharma, e investigar profundamente nossa própria natureza, para o benefício de todos os seres.

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(1) 「更無方所無邊表。豈有秋毫大者麼。」Verso do mestre Keizan. In: (7)
(2) 「無相」(musou), sem forma. Ou, em sânscrito, animitta. O termo em sânscrito é normalmente traduzido como sem marcas ou sem sinal, significando que as coisas não são percebidas pelo sábio como tendo características intrínsecas (alto, baixo; grande, pequeno, etc.). Na resposta: 「不起無相」。
(3) 「法性」(hossei), lit. "Natureza do Darma". O original sânscrito é, provavelmente, dharmatta.
(4)  Dàoxuān (道宣, 596-667 d.C.) foi um monge Chinês. Ele compôs as Biografias Continuadas de Grandes Monges (續高僧傳 xù gāosēng zhuàn), uma coletânea de 30 volumes compilada em 645 d.C.
(5)「壁觀」 (bìguān [ch], hekigan [jp])
(6) 「二入四行」 (èrrù sìháng [ch], ninyuu shigyou [jp]), Duas Entradas e Quatro Práticas.
(7) Keizan, J. (Trad. Cook, F.D.) The record of transmitting the light. Chp. 28. Wisdom Publications, Boston, 2003. & 瑩山禅師(作)「伝光録」岩波文庫 (昭和二年)
(8) Segundo a lenda, Bodhidharma teria estabelecido-se em um eremitério (uma caverna) nas vizinhanças do templo Xiaolin, onde teria ficado em meditação durante nove anos. Nessa mitologia, ele teria ficado furioso por cair no sono ao tentar meditar, e resolvera arrancar suas pálpebras que - ao serem lançadas à terra - brotaram numa árvore de chá. Por isso, Bodhidharma também é tido por alguns como sendo um dos patronos do chá - usado pelos monges para manterem-se acordados durante os longos períodos de prática.
(9) Como os 500 arhats descritos no Sutra do Lótus.
(10) Segundo Dàoyuán (道原), em Os Registros da Transmissão da Lâmpada (景德传灯录, jǐngdé chuándēnglù), publicado em 1004 d.C. 
(11) In: Ferguson, A. Tracking Bodhidharma: a journey to the heart of Chinese culture. Counterpoint, Berkeley, 2012.