julho 29, 2012

Os papéis das comunidades religiosas na sociedade: uma breve reflexão

Li recentemente uma postagem em um blog cristão intitulada: "Para o quê Deus nos chamou afinal?" A matéria chamava para uma releitura dos propósitos da comunidade cristã, em resposta ao ativismo social que tem sido extensivamente praticado por membros da Igreja. O autor defende a ideia de que a Igreja tem uma missão unicamente espiritual; e que não é recomendável aos praticantes engajarem-se em protestos e ativismos sociais. É claro que o principal papel das igrejas é oferecer suporte espiritual para os fiéis; porém isso não é tudo.  A própria ideia de querer separar o "eu-cristão" do "eu-cidadão" é não só impossível, como também anti-cristã.

Ler esse blog trouxe-me à mente uma pregação que assisti uma vez, em que o líder evangélico R. R. Soares argumentava que a igreja não tem que dar cestas básicas: "isso é trabalho do governo!", dizia; o trabalho da igreja é orar e oferecer o "pão espiritual." Pergunto-me: quão raso e quão deturpado é o entendimento de quem separa tão veementemente as coisas espirituais do mundo material? O próprio Jesus exorta seus seguidores (Lc 6:30; Mt 5:32) a doarem a quem necessita; e vai até ao extremo do desapego: "Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, e segue-me." (Mt 19:21). Paulo, depois de Jesus, também coloca a caridade em evidência, retratando-a como o maior de todos os dons espirituais (1Cor 13:13).

Num contexto bíblico, afirmar que cristãos não devem envolver sua fé nos assuntos da sociedade é tanto absurdo quanto blasfêmia. No sermão da montanha, Jesus encoraja seus discípulos a espalharem-se na multidão, levando sua sabedoria (Mt 5:13-17) como luz. Jesus era revolucionário, e incitava assim seus discípulos a mudar o mundo. E, por séculos, eles ouviram esse chamado. A Igreja contribuiu muito (e ainda contribui) para promover educação e saúde em diversas comunidades carentes espalhadas mundo afora. Padres missionários foram os primeiros a decifrarem as línguas de países longínquos: graças a eles tivemos os primeiros dicionários e pudemos estabelecer contatos e entender suas culturas (ou o que restou delas após a catequese, em alguns casos). Também graças à Igreja, muito se avançou na ciência - ainda que dentro dos limites de interesse do Vaticano. E ainda que neguemos a importância disso tudo, não podemos esquecer do papel de agregador social que as igrejas vêm desempenhando ao longo dos séculos. Quantas revoluções e quantas revoltas civis não devem ter nascido às surdinas em meio a uma tranquila missa de domingo? 

Infelizmente, a mentalidade medieval que impunha as vontades e teologias controladoras do clero sobre a massa de discípulos leigos ainda persiste até hoje. Enquanto os cristãos criarem essa (inexistente) separação entre o Reino de Deus e a vida aqui e agora, não haverá volta de Jesus, nem paraíso. Enquanto eles não entenderem e seguirem a mensagem verdadeira de Jesus - que é mais clara que um céu aberto de Verão - ficarão proclamando angustiados por sua volta e desperdiçando a vida única e maravilhosa que lhes foi dada, in lieu da vazia esperança de uma eternidade de bençãos e alegrias no pós-morte. Era exatamente essa mesma visão determinista que o clero medieval - em associação com reis, imperadores e aristocratas - pregava dentre seus fiéis como mecanismo dominador para que eles aceitassem submeter-se, sem reclamação e sem revoltas, a uma vida medíocre. Jesus, o profeta revolucionário que tentava trazer o homem mais perto de Deus, transformado em um personagem passivo; um observador de braços cruzados. Um conformista. Tem algo muito errado nisso. 

Se realmente os cristãos amam seu deus e Jesus, não podem jamais deixar de lado o aspecto social. Jamais. Só assim serão verdadeiramente a luz que iluminará o mundo.


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No contexto budista, a situação é um pouco mais simples. Aqui no ocidente, o budismo floresceu já com uma postura meio revolucionária. Ser budista era uma resposta à mentalidade "quadrada" do ocidente cristão; meio que como uma parte da rebeldia da juventude dos anos 60. Engana-se quem pensa que a filosofia budista de compaixão e equanimidade (e, em especial no Zen, a ideia de "não-ação") tem alguma coisa a ver com conformismo. O ativismo budista, particularmente no Vietnã, Myanmar, Índia e Tibete é forte; e é marcado pelo ideal da "resistência passiva", bastante difundidos por mestres budistas como Thich Nhat Hahn e Dalai Lama, e por não-religiosos como Gandhi. Não é raro vermos protestos de monges budistas contra a ocupação e aculturação promovida por regimes comunistas como no Vietnã e no Tibete. (Com mais frequência do que o desejado, vemos também atos desesperados, como os casos de autoimolação. Apesar de não ferir terceiros, é um ato triste de extrema violência, e reprovado por vários mestres budistas.) 

A filosofia budista tem a interdependência dos fenômenos como um de seus pontos centrais. A interdependência inspira responsabilidade e consciência social, e daí o envolvimento em causas sócio-politicas advém naturalmente. Assim como as igrejas, os templos exercem um trabalho de assistência social importante. No trágico episódio do tsunami que assolou a costa nordeste do Japão, por exemplo, vários templos serviram como abrigos aos desalojados, que ficaram sob cuidado dos monges. 

Nas sociedades ocidentais, o papel dos templos budistas é fortemente associado à propagação das diversas manifestações culturais orientais; das artes marciais como o Tai Chi ao ensino de idiomas. E cada uma dessas manifestações é também um veículo de transmissão budista. O suporte espiritual à comunidade vem através das diversas práticas, e dependem da denominação do templo. No Zen, o principal elemento espiritual é o aperfeiçoamento individual (também, por definição, coletivo) sob assistência de um monge mais experiente que busca desenvolver no praticante as características essenciais para a manifestação da compaixão ilimitada. Na escola Zen, o principal foco é a meditação (que, aliás, é o que significa a palavra "zen"), reconhecida como sendo o elemento central para o desenvolvimento das seis perfeições aspiradas por um budista (i.e. generosidade, disciplina ética, paciência, esforço entusiástico, concentração e sabedoria). Há também o elemento da fé, trabalhado através de arquétipos (diferentemente da visão teísta), em cerimônias e elementos religiosos. O Zen reconhece que diferentes pessoas têm diferentes visões de mundo e diferentes modos de trabalhar sua espiritualidade e, por isso, oferece diferentes práticas independentes de dogmas. 

Dessa forma, os principais papéis das comunidades budistas seriam: (i) oferecer uma alternativa àqueles que buscam um caminho de desenvolvimento pessoal (ou espiritual) independente de dogmas e crenças, (ii) servir de agregador social às comunidades (particularmente de imigrantes) locais, (iii) atuar como difusor de elementos da cultura oriental.

Por fim; independentemente da religião, ter uma comunidade de prática é de importância fundamental. O caminho espiritual é estreito e difícil. É uma jornada solitária; mas é possível (e talvez fundamental) percorrê-la ao lado de outras pessoas - e isso faz toda a diferença. Servir de suporte aos amigos, especialmente quando vier aquele escorregão que todos damos; essa é a função primordial de toda comunidade religiosa e a razão de ela vir a existir. Talvez ainda mais fundamental seja perceber que a Igreja - ou a Sangha - é muito maior do que as paredes do seu templo. É muito maior que as barreiras de sua religião. É do tamanho exato do universo inteiro.

Esforcemo-nos juntos!