setembro 29, 2012

Oh, Lua!


Uma noite fria - sentado sozinho em minha cabana vazia
Cheia apenas com a fumaça do incenso.
Lá fora, um bambuzal de centenas de árvores;
Na cama, livros e mais livros de poesia.
A Lua brilha por cima da janela,
E toda a vizinhança está em silêncio, exceto pelo lamentar dos insetos
Ao olhar essa cena, emoção sem limites,
Mas nenhuma palavra. (Ryokan (7))

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Os dias de Lua cheia - como hoje - são dias especiais no calendário budista. Os principais eventos da vida do Buda Shakyamuni, por exemplo, são relatados como ocorrendo durante noites de Lua cheia: seu nascimento, sua saída do palácio para o caminho espiritual, sua iluminação e sua morte. Outra ocorrência notável da Lua no imaginário budista é como símbolo da percepção das coisas como elas são (Nirvana), como ilustra a figura do bhavachakra em um post anterior (1).

Enquanto o Sol nos oferece uma perspectiva de passagem de tempo mais curta e imediata, a observação do ciclo lunar nos serve de marcador de um período mais extenso de tempo. Refletindo as tradições da Índia védica pré-budista, Buda manteve a observação das Luas cheia e nova como períodos de prática intensificada, conhecido na tradição Theravada  (2) como Uposatha.

O Uposatha foi transmitido também através do Mahayana (2) e, ao passar pela China e chegar ao Japão, sofreu algumas mudanças substanciais. Segundo a lenda, os seguidores do buda Shakyamuni se ajuntariam durante os dias do Uposatha para meditarem juntos. Durante esses eventos, os discípulos leigos recebiam ensinamentos dos monges - que então recitavam as 227 regras de disciplina que eles receberam do Buda. Esse hábito evoluiu para uma cerimônia de confissão e arrependimento, durante a qual os monges e monjas confessavam suas violações e faziam votos de praticarem melhor no futuro. No Mahayana, a cerimônia mantém o espírito de confissão e arrependimento, porém a prática de fazê-lo para outros monges foi abolida.

Nas tradições do Zen Japonês (na escola Soto), a cerimônia é conhecida como 略布薩 (ryaku fusatsu). Ryaku significa abreviada, e fusatsu (uposatha) significa (3), mais ou menos, "continuar a boa prática" e "parar as más práticas" (4). As cerimônias variam em certa extensão entre os diferentes templos da escola, mas de forma geral seguem a seguinte estrutura (5):

1. Reconhecimento das más ações e confissão de arrependimento

 (懺悔文, Sange-ge, Gatha de Arrependimento)

我昔所造諸悪業(Ga-Shaku-Sho-Zou-Sho-Aku-Gou)
皆由無始貪瞋癡(Kai-Yuu-Mu-Shi-Ton-Jin-Chi)
従身語意之所生(Jyuu-Shin-Go-I-Shi-Sho-Shou)
一切我今皆懺悔(Issai-Ga-Kon-Kai-San-Ge) 

Ou, na versão Japonesa (6):

我れ昔より造る所のもろもろの悪業は
Ware mukashi yori tsukuru tokoro no moromoro no akugou wa
皆無始の貪瞋癡に由る、
Minna mushi no tonjinchi ni yoru
身語意より生ずる所なり、
Shingoi yori shouzuru tokoro nari
一切我今、みな懺悔したてまつる
Issai ware ima, mina sanke shitate matsuru.


Todas as minhas ações não-saudáveis cometidas
Por avareza, ódio e ilusão desde o começo sem começo
Oriundas do corpo, fala e mente
Eu agora reconheço



2. Reconhecimento e homenagem aos antepassados

Reverência aos sete budas antes de Buda
Reverência ao Buda Shakyamuni
Reverência ao Buda Maitreya
Reverência ao Bodhisattva Manjusri
Reverência ao Bodhisattva Samantabhadra
Reverência ao Bodhisattva Avalokitesvara
Reverência à sucessão de ancestres


3. Recitação dos votos do Bodhisattva

(四弘誓願, Shi-gu-sei-gan, Os quatro grandes votos do Bodhisattva)

衆生無辺誓願度(Shu-Jyou-Mu-Hen-Sei-Gan-Do)
煩悩無尽誓願断(Bon-Nou-Mu-Jin-Sei-Gan-Dan)
法門無量誓願学(Hou-Mon-Mu-Ryou-Sei-Gan-Gaku)
仏道無上誓願成(Butsu-Dou-Mu-Jou-Sei-Gan-Jyou)


Os seres são inumeráveis, faço voto de salvá-los
Os desejos são insaciáveis, faço voto de extinguí-los
Os portais do Dharma são ilimitados, faço voto de aprendê-los
O caminho de Buda é insuperável, faço voto de realizá-lo


4. Recitação do Refúgio na Jóia Tríplice

(三帰礼文, San-Ki-Rai-Mon, Versos do Tríplice Refúgio)

自帰依仏(Jii-Ki-E-Butsu)
当願衆生(Tou-Gan-Shu-Jyou)
体解大道(Tai-Ke-Dai-Dou)
発無上意(Hotsu-Mu-Jyou-I)

自帰依法(Jii-Ki-E-Hou)
当願衆生(Tou-Gan-Shu-Jyou)
深入経蔵(Jin-Nyuu-Kyou-Zou)
智慧如海(Chi-E-Nyou-Kai)

自帰依僧(Jii-Ki-E-Sou)
当願衆生(Tou-Gan-Shu-Jyou)
統理大衆(Tou-Ri-Dai-Shu)
一切無礙(Issai-Mu-Ge)


Eu tomo refúgio em Buda.
(Que todos os seres
Compreendam o grande caminho
E despertem)

Eu tomo refúgio no Dharma.
(Que todos os seres
Penetrem profundamente no oceano
Da sabedoria da Iluminação)

Eu tomo refúgio na Sangha.
(Que todos os seres
Carreguem harmonia ao mundo
E vivam sem obstáculos na mente)


5. Reafirmação dos 3 Preceitos Puros

(三聚浄戒, San-Jyu-Jyou-kai)

摂律儀戒 (Shou-Ri-Tsugi-Kai)
摂善法戒 (Shou-Zen-Bou-Kai)
摂衆生戒 (Shou-Shuu-Jyou-Kai)


Faço voto de evitar todo mal
(É a morada da lei de todos os Budas;
É a fonte da lei de todos os Budas)

Faço voto de esforçar-me para viver na Iluminação
(É o ensinamento do anuttara samyaksambodhi
e o caminho daquele que pratica e é praticado)

Faço voto de viver para o benefício de todos os seres
(É transcender profano e sagrado
e cruzar a si mesmo e aos próximos)



6. Reafirmação dos 10 Preceitos Graves

(十重禁戒, Jyuu-Jyuu-Kin-Kai)

不殺生戒 (Fu-Sesshou-Kai)
不偸盗戒 (Fu-Chuu-Tou-Kai)
不邪淫戒 (Fu-Jya-In-Kai)
不妄語戒 (Fu-Mou-Go-Kai)
不飲酒戒 (Fu-In-Shu-Kai)
不説過戒 (Fu-Sekka-Kai)
不自讚毀他戒 (Fu-Ji-San-Ki-Ta-Kai)
不慳法財戒 (Fu-Ken-Bou-Zai-Kai)
不瞋恚戒 (Fu-Shin-I-Kai)
不謗三宝戒 (Fu-Bou-San-Bou-Kai)


Faço votos de não matar.
(Por não tirar vida, a semente da árvore de Buda cresce.
Transmita a vida de Buda, e não mate.)

Faço votos de não tomar o que não me é dado.
(O sujeito e os objetos são como são, dois porém um.
O portal da liberação permanece aberto.)

Faço votos de não fazer mau-uso da sexualidade.
(Deixe as três rodas do sujeito, objeto e ação serem puros.
Com nada a desejar, segue-se lado a lado com os Budas.)

Faço votos de não incorrer em discurso falso.
(A Roda do Dharma gira desde o princípio.
Não há nem excesso e nem falta.
O doce orvalho permeia a tudo e colhe a verdade.)

Faço votos de não ingerir intoxicantes.
(Originalmente puro, não macule. Isso é atenção plena.)

Faço votos de não caluniar.
(No Budhadharma, caminhe junto, aprecie junto, realize e perceba junto.
Não incorra em censura. Não incorra em conversa banal.
Não corrompa o caminho.)

Faço votos de não orgulhar-me às custas de outros.
(Budas e ancestres realizam o vasto céu e a grande Terra.
Quando eles manifestam o nobre corpo, não há dentro ou fora na vacuidade.
Quando eles manifestam o corpo do Dharma,
não há sequer um grão de terra no chão.)

Faço votos de não ser avarento.
(Uma frase, um verso - isso são dez mil coisas e centena de folhas;
Um Dharma, uma realização - isso são Budas e ancestres.
Poranto, desde o princípio, não há necessidade de mesquinhez.)

Faço votos de não cultivar maldade.
(Nem negativo, nem positivo, nem real ou irreal.
Há um oceano de nuvens iluminadas e um oceano de nuvens brilhantes.)

Faço votos de não denegrir os Três Tesouros.
(Expressar o Dharma com esse corpo é o principal.
A virtude retorna ao oceano da realidade.
É incomensurável; nós aceitamos com respeito e gratidão.)



7. Extensão de méritos

十方三世一切仏(Ji-Ho-San-Shi-I-Shi-Fu)
諸尊菩薩摩訶薩(Shi-Son-Bu-Sa-Mo-Ko-Sa)
摩訶般若波羅蜜(Mo-Ko-Ho-Jya-Ho-Ro-Mi)


(Portanto, nessa noite de Lua cheia,
Oferecemos o mérito do Caminho do Bodhisattva
Através de todos os mundos, à natureza não-nascida de todos os seres.)

Todos os Budas, em todo o espaço e tempo;
Todos os seres, Bodhisattvas e Mahasattvas;
Sabedoria além da Sabedoria
Mahaprajna Paramita.



A Lua cheia nos oferece um momento não apenas da beleza das coisas simples da vida, como também de reflexão de nosso comportamento. Quantas luas cheias você ainda terá chance de ver? O tempo passa - e às vezes passa mais depressa do que gostaríamos. O que você está deixando para o mundo? 

Encerro com mais um poema do grande monge poeta Ryōkan (7):

À noite, montanhas adentro, sento-me em zazen.
Os assuntos dos homens nunca chegam até aqui.
Na quietude, sento-me em uma almofada de frente à janela vazia.
O incenso já foi engolido pela noite sem fim;
E meu manto tornou-se um vestido de orvalho branco.
Sem conseguir dormir, caminho pelo jardim;
De repente, sobre o mais alto pico, desponta a Lua cheia. 




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(1) Embora, note, isso não significa que a Lua em particular seja O símbolo da iluminação. Ao invés da Lua, poderia ser o Sol, uma árvore, ou qualquer outra coisa (ou nada).

(2) Theravada é uma das duas tradições budistas existentes. É particularmente presente no sudoeste asiático, e é tida como sendo a mais próxima das práticas observadas durante o tempo de Buda (ca. 500 a.C.). O Mahayana, outra corrente das principais tradições budistas, tem sua origem por volta do começo da era cristã. Dentro do Mahayana, encontram-se as escolas Chinesas, Japonesas e Tibetanas.

(3) Os ideogramas 布薩 são apenas usados para fins de transliteração; e não têm significado. 布薩 é uma transliteração do sânscrito poṣadha que, por sua vez, é corruptela do Páli uposatha.

(5) Tomado como exemplo a ordem feita pelo San Francisco Zen Center. Os textos em parênteses, pequenos, correspondem às recitações feitas pelo oficiante da cerimônia.

(6) Os textos do Zen - em particular as gathas - têm normalmente duas versões de recitação: as que mantêm  a estrutura original Chinesa e o recitam com leitura Japonesa dos ideogramas; e a re-interpretação em gramática Japonesa. Ambos são oficialmente utilizados, e a escolha dentre eles depende de cada templo/oficiante. 

(7) Ryōkan Taigu (良寛大愚?) (1758–1831) foi um monge Zen budista da escola Soto. Ficou conhecido pelo seu comportamento excêntrico e pelo seu talento com poesia e caligrafia. Em: Stevens, John (Trad.). One Robe, One Bowl: The Zen Poetry of Ryōkan. Weatherhill, 2006.


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