outubro 26, 2013

Tremor



"Ananda, há oito razões, oito causas para o surgimento de um grande terremoto. Esta grande terra está estabelecida na água, a água no vento, o vento no espaço. E quando um vento forte sopra, este agita a água e devido à agitação da água a terra treme. Essa é a primeira razão.
Em segundo lugar há algum contemplativo ou Brâmane que desenvolveu poderes supra-humanos ou um deva forte e poderoso cuja consciência terra está pouco desenvolvida e a sua consciência água é imensurável, e ele faz com que a terra se sacuda e se agite, e trema violentamente. Essa é a segunda razão.
Outra vez, quando um Bodisatva plenamente atento e plenamente consciente, falece no paraíso de Tusita e descende no ventre da sua mãe, então a terra se sacode e se agita, e treme violentamente. Essa é a terceira razão.
Outra vez, quando um Bodisatva plenamente atento e plenamente consciente, emerge do ventre da sua mãe, então a terra se sacode e se agita, e treme violentamente. Essa é a quarta razão.
Outra vez, quando o Tathagata realiza a perfeita iluminação, então a terra se sacode e se agita, e treme violentamente. Essa é a quinta razão.
Outra vez, quando o Tathagata coloca em movimento a Roda do Dhamma, então a terra se sacode e se agita, e treme violentamente. Essa é a sexta razão.
Outra vez, quando o Tathagata, plenamente atento e plenamente consciente, renuncia à sua formação vital, então a terra se sacode e se agita, e treme violentamente. Essa é a sétima razão.
Outra vez, quando o Tathagata realiza o parinibbana, então a terra se sacode e se agita, e treme violentamente. Essa é a oitava razão.
Essas, Ananda, são as oito razões, as oito causas para o surgimento de um grande terremoto." (Buddha)[1] 

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Ontem, pela primeira vez em três anos de Japão, fui surpreendido no meio do zazen por um terremoto. Foi uma experiência no minimo curiosa. Segundo os antigos textos budistas, existem oito interpretações pra um terremoto, a maioria delas associadas a experiências únicas de um Buddha ou um grande sábio. Se analisarmos por essa linha, o Japão está cheio de Buddhas!

Ultimamente a terra tem estado bem calma por aqui: um cenário completamente diferente de quando cheguei, em 2011, em que todos os dias - literalmente - havia pelo menos um aftershock do grande terremoto de 11 de março. Creio que esse de ontem foi o primeiro terremoto sensível aqui em pelo menos 20 dias. Além desse, só consigo me lembrar de mais dois terremotos nos últimos meses. Em termos práticos, essa periodicidade é uma coisa boa, pois significa que as placas tectônicas estão liberando sua energia pouco a pouco, o que evita o acúmulo e a súbita liberação de energia em um deslizamento de maiores proporções, como o ocorrido naquele episódio de 2011.

Sempre me perguntam como é um terremoto, e se eu não tenho medo. O primeiro terremoto que experimentei, no dia 7 de abril de 2011 - quase 1 mês após o grande tremor - foi terrível e assustador. Especialmente porque aconteceu de noite; e acordar com o quarto chacoalhando e as coisas tremendo ao seu redor não é um dos jeitos mais sutis de despertar. Outro terremoto, e o mais forte, de que me lembro particularmente ocorreu durante uma das missões de voluntariado a Tohoku. Não sei exatamente onde e nem qual foi a magnitude (me lembro que a sensação foi de Shindo 5 baixo, na escala Japonesa de 1 a 7), mas foi definitivamente o mais assustador e ocorreu - novamente - no meio da noite. Naquela noite em particular, eu havia me separado do grupo pois não conseguia dormir devido ao incenso anti-mosquito que haviam acendido no nosso quarto. Eu estava, então, sozinho, no meio de uma quadra de basquete rodeada de janelões de madeira e vidro. Acho que, mais do que o tremor em si, foi o barulho que mais assustou.

Estar em zazen durante o terremoto foi uma experiência interessante, pois permitiu observar mais claramente como a mente responde a um evento inesperado como esse (aliás, diga-se de passagem, foi um combo raro: o terremoto veio durante a passagem de um tufão por aqui). Após a óbvia sensação de surpresa, vem um checklist mental de todas as coisas que podem acontecer, os lugares para onde correr, e o que é necessário pegar. Após esse pseudo-pânico inicial, vem a racionalidade interpretar a magnitude do terremoto e avaliar a periculosidade. E tudo isso ocorre em frações de segundos! É impressionante a eficiência do nosso cérebro. Passado essas partes importantes, a mente (a minha, pelo menos) começa a fantasiar os possíveis cenários pós-terremotos (e se a casa cair? E se minha janela quebrar e a chuva começar a entrar? etc.) e a conjecturar onde teria sido o epicentro e o que pode ter acontecido em outros lugares. E tudo isso nos breves instantes do tremor. É possível resumir a ação da mente em:

1. Sensação (i.e. meu corpo se comporta de maneira diferente);
2. Percepção (i.e. tem algo diferente acontecendo);
3. Conceituação (i.e. isso é um terremoto);
4. Conscientização (i.e. o terremoto pode ser perigoso);
5. Racionalização (i.e. toda a cadeia de pensamentos que, com base em experiências anteriores, analisa o fenômeno e lista as possíveis respostas a ele);

6. Ação (i.e. as respostas mentais - medo, apreensao, etc. - e físicas - correr para debaixo da mesa, etc.)

No meu caso, como eu já havia experienciado terremotos antes e conheço os procedimentos de segurança a serem tomados, pude rapidamente avaliar que esse não era um tremor perigoso, relaxar e curtir a terra me balançar o quanto quisesse. Contudo, imagino que quem nunca experimentou um terremoto antes iria sentir um desespero enorme, e - devido à falta de parâmetros mentais - não conseguiria realizar as etapas 4 e 5 de forma apropriada, gerando medo, apreensão e sofrimento para si; não pelo evento em si, mas pelo despreparo psicológico.

Esse raciocínio pode ser estendido para outros fenômenos e outras experiências, e explica bem nosso desconforto frente a situações novas: na falta de paradigmas mentais, nossa mente recorre às experiências e informações mais próximas (no seu próprio entender) àquele fenômeno que experimentamos, e extrapola a interpretação para aquele momento. Por exemplo, no caso do terremoto, alguém que nunca sentiu a terra tremer antes pode recordar-se dos vários eventos catastróficos que viu na televisão e trazer para o momento presente as expectativas terríveis que foram testemunhadas naqueles eventos, e - obviamente - terá uma reação nada condizente com a realidade. De maneira análoga, se vamos a um país diferente e vemos alguém se comportando de uma maneira que, em nossa cultura, associamos a uma pessoa violenta, nossa mente automaticamente julgará aquela pessoa como perigosa e trará para o momento presente sentimentos de medo, apreensão e insegurança, que possivelmente não têm a menor razão de existir. O Buddha descreve isso como a "ignorância", ou seja, o "não conhecer" da realidade tal como ela é; e discute que é essa ignorância que, em última instância, leva ao sofrimento ou ao desconforto. O fim do sofrimento depende, portanto da eliminação da ignorância, através do desenvolvimento de uma visão clara da realidade; dependente apenas da experiência em si, livre dos filtros mentais que podem, muitas vezes, ser inapropriados para lidar com aquela experiência em particular. E, pra isso, é preciso conhecer como a mente funciona, e como nos entrinchamos em nossos próprios conceitos, alheios à realidade, sem nem perceber. E é exatamente esse o propósito sem propósito do zazen.

Enfim, ao contrário da descrição do Buddha no cânon, apesar do terremoto de ontem e da incrível experiência associada a ele, não creio que atingi a iluminação suprema, mas pelo menos aprendi um pouquinho mais na prática sobre o Dharma. :)



(P.S. O terremoto de ontem foi M7.1, no meio do mar, e ocasionou pequenas tsunamis de, no máximo, 10 cm. Ninguém se machucou e não houve nenhum agravamento da situação em Fukushima, apesar de o epicentro ter sido próximo à usina.)

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[1] Em: O Grande Discurso do Paranibbana (Mahaparanibbana Sutta), Digha Nikaya, v. 16, c.3, vv13-20. Disponível aqui: http://www.acessoaoinsight.net/sutta/DN16.php

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