maio 02, 2012

गते गते पारगते पारसंगते (gate gate pāragate pārasaṃgate)




[1]

Quando eu decidi começar a estudar Zen a sério no Busshinji  (仏心寺, templo Sōtō Zen onde eu praticava no Brasil), perguntei ao  jikidō (直堂) daquele dia: "Então, estive pensando e gostaria de estudar aqui com vocês. O que eu preciso fazer pra isso?" E ele me respondeu: "Ah, venha no sábado que vem e sente com a gente de novo!" Eu, insatisfeito, perguntei de novo: "Mas, e as palestras? Quando costumam acontecer?" Ele olhou para mim e riu, dizendo: "Ah, aqui não tem isso! É só vir e sentar!" Bom, eu já havia praticado num monastério Zen (Rinzai) chinês anteriormente (Templo Zulai), e sempre tínhamos palestras depois das meditações e aos domingos! Como era possível que não tivesse algo do gênero ali no Busshinji? Fiquei desapontado.

O mestre Saikawa (abade do Busshinji) não costuma dar palestras, exceto durante os períodos de prática intensa (sesshin, 攝心). Lembro-me uma vez em que ele começou a ensinar e - num certo ponto - parou o que estava falando e disse: "Oh, eu falo demais! Por favor, perdoem-me. Não estou os treinando direito!" Isso me fez lembrar aquele momento que mencionei anteriormente e me fez rir sozinho. Naquele instante, eu entendi tudo. 

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Nós somos acostumados a receber conhecimento de outras pessoas através de aulas ou palestras. Tem sido assim por toda nossa vida, desde a pré-escola até os pós-doutoramentos; em particular no que diz respeito à Filosofia e à Religião. E, claro, o Budismo não é exceção. Contudo, o foco é um pouco diferente no Zen. O Budismo tem vários conceitos, terminologias, teorias, cosmologias, e jeitos peculiares de expressá-los. Um dos meus favoritos é a imagem abaixo:


bhavacakra: "roda do samsara".

Essa é uma imagem comumente encontrada nas tradições tibetanas do Budismo, e também em alguns templos na Índia. É um modo bastante conciso de explicar os ensinamentos de Buda de modo abrangente e direto. Contudo, enquanto muita gente se foca no centro da imagem, o Zen aponta para o pequeno detalhe no canto superior esquerdo: a Lua. Essa Lua desenhada ali não significa nada além do que a Lua em si: é a realidade - como ela é - aqui e agora. Pode chamar isso de nirvana, iluminação, satori, Deus, etc. se quiser usar alguma terminologia específica. Todas as representações dentro da roda, no meio do desenho, representam conceitos e fenômenos que ocorrem dentro de nossa mente obscurecida e confusa, que nos impede de experimentar as coisas tal como elas são (ver a Lua); e, então, há Buda (no canto superior direito) tentando, de alguma forma, nos ajudar a fazê-lo. Todos seus ensinamentos práticos destacam a importância do momento presente, e isso é algo que temos que experimentar por nós mesmos. Da mesma forma, eu poderia gastar horas tentando explicar o quanto o bolo de laranja da minha avó é delicioso: como ele é crocante por fora, mas leve e molhadinho por dentro; doce, mas com uns toques de azedo aqui e ali (se você tiver sorte de pegar um dos pedacinhos de casca caramelizados que ela coloca na massa). Contudo, não importa o quanto eu escreva a respeito, você jamais conhecerá de fato o bolo enquanto não comê-lo. O Buda aponta para o bolo sobre a mesa. Só temos que ir até lá e comê-lo. 


No Zendô[2], cada passo é um ensinamento. Por que caminhamos com as mãos naquela postura esquisita? Por que nos sentamos com as pernas cruzadas? Por que fazemos reverência à almofada zilhões de vezes? Por que nos viramos em sentido horário? Para que existe aquela linha branca no zafu? E todas as roupas excêntricas? E os cânticos?! Cada passo, cada movimento e cada não-movimento são o ensino fundamental. Cada pequena coisa. Só conseguimos perceber isso quando abandonamos todas as nossas expectativas do que o ensinar deveria ser e o recebemos como é.

Ir além de nossas ideias, além de nossos conceitos e além de nossas mentes. Esse é o ponto fundamental: ir além, e além. E, então, mais além. Isso é sabedoria em sua forma mais pura. Isso é "iluminação". Um velho texto budista tradicional, o "ensinamento sobre a essência da grande perfeição da Sabedoria" - mais comumente conhecido como Sutra do Coração (Prajñāpāramitā Hṛdaya sūtra em Sânscrito, ou Hannya Shingyo [般若心経] em Japonês) - finaliza com a seguinte expressão:


 गते गते पारगते पारसंगते बोधि स्वाहा 
(gate gate pāragate pārasaṃgate bodhi svāhā)

significando: "vá, vá, vá além; vá mais além. Realização perfeita!" E é isso, simples assim. Não é necessário estudar e recitar páginas e páginas de velhos textos mortos para perceber isso. Sobre esse sutra, o velho mestre Rujing[3] diz:

Todo o corpo é uma boca [sino] pendurado no espaço vazio, 
independentemente do vento do leste, oeste, sul ou norte,
juntando-se ao universo ao ecoar nossa sabedoria.
Ting-ting, ting-ting, ting-ting."[4]

ao qual, mestre Dogen comenta: "todo o corpo é sabedoria. Todo o outro é sabedoria. Todo o eu é sabedoria. Todo o leste, oeste, sul e norte é sabedoria."[4]

É isso. Ecoe.




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Notas e referências:
[1] Vide postagem anterior.



[2] Um típico zendô no ocidente. Posturas, roupas, layout. Para quê?


[3] Mestre Rujing (Jp. Nyōjo, 1162-1228) foi um monge Chinês da escola Caodong do Zen. Mestre Dogen estudou com ele na China, e trouxe seus ensinamentos para o Japão, dando origem à escola Sōtō.


[4] In: Eihei Dogen, "Treasury of the True Dharma Eye" (Shoubougenzou, 正法眼蔵). Capítulo 2: "Manifestation of Great Prajna" (摩訶般若波羅蜜). K. Tanahashi (Ed.) Shambhala: Los Angeles, 2010.

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